quarta-feira, 12 de maio de 2010

Botequim: Palco de Cultura, Refúgio e Resistência... e de História



Quem nunca criou ou ouviu uma filosofia de botequim? Então, ao menos, compartilhou estórias, discutiu política e presenciou cenas hilárias num boteco? Esse ambiente de socialização e diversão dos dias atuais também já foi importante palco da história do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX, durante a belle époque. O livro de Sidney Chalhoub, Trabalho Lar e Botequim, escrito a partir da análise de relatos policiais e processos criminais, é um delicioso aperitivo pra quem deseja conhecer o cotidiano dos botequins cariocas e seu papel na formação da cultura popular.
A obra de Chalhoub trata, fundamentalmente, da constituição de uma nova ordem social durante os primeiros anos da República Velha no Rio de Janeiro, pautada, sobretudo, no lazer popular da classe trabalhadora, nas ruas, nos botequins e na repressão policial. O título de um dos capítulos, “matando o bicho e resistindo aos meganhas”, demonstra claramente os costumes populares em tomar pinga e resistir aos policiais da capital federal no início do século XX, além de abordar as rivalidades étnicas e nacionais arraigadas na mentalidade popular.
        Segundo Sidney Chalhoub, a maior integração do Brasil à economia capitalista, especialmente após a emancipação dos escravos e o advento da República, contribuiu intrinsecamente para a modificação da sociedade carioca no início do século passado, principalmente com o aumento das exportações de café. A partir daquele momento, a antiga capital federal se tornou um grande centro cosmopolita intimamente ligado à produção e ao comércio europeu e americano. Esse fato fez com que o prefeito da velha capital, Pereira Passos (1902 - 1906), em parceria com o presidente Rodrigues Alves (1902 - 1906), adotasse uma estrutura de poder caracterizada por um cosmopolitismo desmedido e agressivo ao realizar a revitalização e urbanização do centro do Rio de Janeiro, alargando avenidas, demolindo cortiços e expulsando a população pobre para as periferias. Enfim, a adoção de padrões europeus e elevação da burguesia comercial começaram a fazer parte da nova organização social carioca.
        A elite da capital pretendia não só impor mudanças de ordem material, mas criar um novo modo de vida urbano, baseado na sociedade parisiense, desconsiderando os valores culturais dos setores menos favorecidos da sociedade. Nesse sentido, os policiais, caracterizados por Chalhoub como “meganhas”, tiveram papel fundamental na instauração da “ordem”, corroborando a imposição do assalariamento ao trabalhador pela vigilância constante do aparato policial. Eram considerados vadios todos aqueles que se encontravam nos botequins e nas ruas, e não conseguiam provar sua condição de trabalhadores.
        Entretanto, segundo relatos pontuados por Chalhoub, os meganhas não estavam nas ruas para arbitrar os conflitos, mas para reprimir os pobres. Era comum o forjamento de declarações nos inquéritos pelos policiais a fim de incriminar humildes trabalhadores. Isso gerava uma falta de confiança na imparcialidade da justiça. Por esta razão, os populares resistiam às autoridades policiais e acreditavam que estes atendiam a interesses plenamente burgueses.
        Para muitos populares, o trabalho e o lazer se misturavam e, por isso, o botequim se caracterizava como campo onde eram vividos conflitos e tensões cotidianos. Dessa forma, os populares envolvidos em processos judiciais sempre procuravam se justificar como humildes trabalhadores e chefes de família. Porém, essas ações nem sempre eram aceitas pela justiça, que era um órgão que representava os interesses do governo republicano e da alta sociedade.
        O autor condena a imposição dos padrões de comportamento da classe dominante aos populares. Chalhoub procura, ainda, demonstrar que a desconfiança dos populares em relação aos policiais teve um sentido cultural e enraizado no modo de vida da classe trabalhadora: eles tinham suas próprias normas e noções de justiça.
        O botequim era como um “observatório popular”, sendo um ponto privilegiado para estudo dos padrões de comportamento do povo. Dessa maneira, o boteco era palco de rixas desencadeadas pelos três pilares analisados no livro de Chalhoub: o trabalho, o amor e o lazer. Esses conflitos eram resultados da cultura de homens comuns e que agiam de acordo com regras de conduta preestabelecida, pautadas principalmente no machismo e no etnocentrismo.
        Finalmente, podemos identificar claramente a posição de Chalhoub em relação aos vencidos (populares), ao mostrar como ocorreu a formação de uma nova ordem social e o posicionamento da polícia e da burguesia sobre o cotidiano dos trabalhadores urbanos, que utilizavam o botequim como refúgio para os problemas de praxe. Além disso, Trabalho, Lar e Botequim tenta mostrar as contradições de um período em que o surgimento de prédios modernos conviveu com a exclusão social e a insegurança de um poder público municipal que custava a se impor.
        Assim, é através da história do povo, onde os operários, vagabundos e pessoas comuns são protagonistas, ambientada no botequim, como local de refúgio e lazer, que Chalhoub escreve a História Social da Primeira República do Brasil.
        Então, paremos por aqui e vamos pro boteco fazer história...

Um comentário:

Kinho disse...

Bem Dinâmico e esclarecedor!